quinta-feira, dezembro 15, 2005

Barcelona


Mediterrânea. Dois mil anos de história. Aberta, desde sempre, a todas as inovações. Acolhedora, plural, diversa. Uma cidade para viver e partilhar.
É assim Barcelona, uma cidade, em todos os aspectos, muito tentadora. É inevitável qualquer um render-se, de imediato, às grandes praças aquecidas pelo sol, às colinas manchadas de verde que parecem olhar dia e noite, como que velando-a, para a cidade, às ramblas inundadas de animação de rua e de gente, aos bares cada um com o seu encanto e a sua personalidade (Barcelona é a cidade europeia com mais bares por habitante), aos jardins e parques mediterrâneos. Ao movimento, tout court.
Barcelona tem, justa e merecidamente, fama de ser a cidade mais moderna e vanguardista de toda a Espanha. Não fosse o meu manifesto e confesso desconhecimento das outras cidades europeias tidas unanimemente como ícones do cosmopolitismo, e arriscaria a dizer que Barcelona será a cidade mais cosmopolita de toda a Europa.
Senhora de uma grande variedade de tesouros artísticos, igrejas e grandes nomes relacionados com a arte e arquitectura vanguardistas, é uma cidade que surpreende pelos seus contrastes. A modelação insólita da cidade imaginada pelos arquitectos modernistas Gaudí e Domenech i Muntaner une-se, de forma surpreendentemente harmoniosa com o gótico, com a art nouveau, com as influências árabes. Se calhar justamente por isso Picasso e Miro se hipnotizaram por esta terra, e aqui passaram largos anos das suas vidas.
Além disso, Barcelona tem a vantagem de ser uma cidade humildemente aberta a outras culturas, a povos diferentes. É uma cidade que dá e recebe, que se faz rica e enriquece quem a visita e se deleita com ela.
São imperdíveis as ramblas, a Plaza Catalunya, a Plaza Reial, o bairro Gótico, toda a obra de Gaudí e de Muntaner – a demência da Sagrada Família, as formas loucas da Pedrera ou da casa Batlló e a sobranceria do Parque Güell do primeiro, o Palau de la Musica do segundo, e o famoso e geométrico Eixample dos dois.
A gente de Barcelona é vista como poupada, fria e excessivamente preocupada com o trabalho, pelo resto dos espanhóis. Não é bem assim. Mas também não é de todo mentira. Mas quem vinha, como eu, de pé atrás, rumo a uma cidade desconhecida, e desconfiado em relação ao feitio das suas gentes, a conclusão não pode ser outra que não esta: a Catalunha e as suas gentes fascinam-me.
Não me sentindo com legitimidade e, portanto, deixando para trás qualquer crítica ou sequer juízo de valor a propósito da legitimidade da vontade independentista da Catalunha, para mais numa altura de agitação social motivada pela polémica que gira à volta do novo estatuto autonómico da Catalunha, a verdade é que, a gosto ou a contra gosto os catalães (ainda) são espanhóis. E a verdade é que, neste momento, levo comigo, para Portugal, uma ideia, não digo diferente, mas pelo menos corrigida acerca dos espanhóis.
O ódio visceral e, pior do que isso, politicamente correcto que nós nutrimos pelos espanhóis ilustra bem uma das nossas piores facetas: um nacionalismo bacoco, saloio e deslocado, atrás do qual se esconde tímida e hipocritamente a nossa velha mania para desculpar a mediocridade própria com os hipotéticos abusos do vizinho.
O perigo iminente da “invasão espanhola” é um velho argumento deste tipo de nacionalismo. Qualquer bem pensante da nossa praça faz ponto de honra em menosprezar o que é espanhol e em atribuir a Espanha a razão dos nossos congénitos males. Insultar Espanha é uma espécie de desígnio nacional que qualquer português, qual macho lusitano, tem obrigação de praticar. É engraçado constatar que este é, além do mais, um desígnio que tem unido, ao longo dos tempos, todos, pobres e ricos, a “elite” e o “povo”.
Invejemos ou não, sintamo-nos mal com isso ou não, a verdade é que Espanha é hoje um país pujante, culturalmente próspero e fascinante em certos modos de vida sociais. Na União Europeia, Espanha é um dos Estados com mais forte presença, influência e personalidade, apesar de ser um país feito de nacionalidades diversas e castigado por inúmeras tentativas independentistas.
Espanha, ao contrário do que nós possamos, ou talvez gostaríamos, de imaginar não tem, em relação a Portugal, nem complexos de superioridade, nem complexos de inferioridade nem complexos de coisa nenhuma. Terá, admito, o cidadão comum, défices de conhecimento históricos e geográficos. Mas não só em relação a Portugal, mas também em relação a outros países. E não consta que alemães, ingleses ou franceses façam disso um ideal patriótico. Porque têm mais do que fazer do que andar a olhar para o vizinho.
Podem criticar a péssima qualidade da televisão espanhola, inundada de programas “cor-de-rosa”, podem gozar com a falta de cultura geral do cidadão comum espanhol, podem detestar o facto de o comércio fechar todo para a siesta a seguir ao almoço, podem abominar os filmes hollywoodescos cronicamente dobrados e nnca legendados, podem até gozar descaradamente com o facto de os espanhóis serem talvez o povo que pior pronuncia e fala o inglês (aqui, Nike lê-se niqué e Bruce Springsteen pronuncia-se brucé springuén), porque falamos de factos e não de juízos de valor sobre um povo. Mas, por favor, tenham noção que a crítica disfarçada de inveja é muito feia.
O que me preocupa verdadeiramente não é que Espanha se instale comercialmente no nosso país, porque isso até pode ser bom do ponto de vista económico. Preocupa-me, isso sim, é que nós não tenhamos a capacidade de fazer o mesmo, expandindo e impulsionando as nossas tímidas empresas para além fronteiras, e, ainda por cima, nos desculpemos com o velho argumento “Espanha”. Desculpem lá, mas essa história é já antiga e já deu o que tinha a dar.
Nota final: Decerto seria mais apropriado que aqui discorresse acerca da minha vivência concreta enquanto estudante ERASMUS, das diferenças em relação ao ensino e ao Direito propriamente dito. A verdade é que só terei uma ideia firme e segura de tudo isso quando a aventura acabar. Preferi deixar-vos o relato de como sinto Barcelona, de como vejo os espanhóis. O resto virá depois, com o tempo.

[N.A.- Texto escrito a convite do Jornal Tribuna, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, e publicado na sua edição de Dezembro de 2005.]

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gosteu muito das tuas palavras Primo, vejo que partilhamos a mesma opinião quanto a estas aventuras, estas maluquices das viagens. Já tinha lido que NIKE têm origem grega, no entanto, salvo melhor opinião (que pode bem ser a tua), por ser o nome comercial de um empresa americana deve-se ler com pronúncia inglesa. Caso contrário, também os espanhóis estão correctos quando lêem a palavra BUS como "bús" e não como "bâss", como nós e, como os ingleses. Porque, como sabes, a palavra BUS têm origem latina, vem da expressão latina "ad omnibus" que quer dizer "para todos" - autocarro/bus = transporte para todos. Um abraço grande, e espero que me partas uma perna já a partir desta terça feira (dia 20), dia em que chego à Pátria. :)

16/12/05 11:42  
Blogger Madrinha do Mateus said...

As coisas que eu aprendo convosco e pelo "vlogs"! incrível!

Estou a gostar, sim senhor! Aqui, fala-se de tudo um pouco. E há comentários p'rá galhofa e até comentários sérios e de grande conhecimento histórico do Galinha!!
Maninho, continuo a admirar imenso a tua "escrita"!

beijo grande!

16/12/05 15:44  
Blogger Susana Vasconcelos said...

Munto lindo!!
Cada vez com mais vontade de ir visitar essa cidade magnífica!
Mas olha lá, este texto só vai sair em Dezembro de 2006? Daqui a um ano? Ou sou eu que sou a cóca-bichinha das gafes? LOL!
Beijinhos!
Susana

18/12/05 03:16  
Anonymous Anónimo said...

Mais uma vez, obrigado pelo teu olho clínico maninha!

18/12/05 13:26  

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