quarta-feira, março 12, 2008

Nem de propósito

Manchete do PÚBLICO de segunda-feira:
"Zapatero ganha em Espanha enquanto Rajoy reforça oposição"
Ora acontece que o PSOE ganhou cinco deputados, o que se repetiu com o PP.
Será que os editores de tão prestigiado matutino ensandeceram, ou o "talento" do director é assim tão determinante?

Apesar destas manipulações e outras tantas calinadas, tão frequentes que já enojam, aqui fica o texto de um fundador sobre os 18 anos do jornal, neste caso de Vicente Jorge Silva.

Começo por confessar que hesitei muito antes de escrever este texto, ainda por cima numa semana em que a actualidade nacional (a criminalidade violenta ou o movimento dos professores) e internacional (as primárias americanas de terça-feira) ofereciam ampla matéria para comentário. Mas acabei por decidir fazê-lo por duas razões essenciais: a primeira é que se trata de um tema que tem a ver comigo e não posso ignorar; a segunda é que a minha opinião sobre os acontecimentos da semana será sempre, apenas, uma opinião entre outras opiniões. Este é o testemunho pessoal – e, nessa medida, único – de alguém que protagonizou uma aventura que, há dezoito anos, mudou o panorama do jornalismo diário português. Mas há um motivo adicional: não posso ficar indiferente quando uma história na qual participei é contada de forma distorcida – pelo menos aos meus olhos – e que, para conveniência dos seus actuais protagonistas, surge exposta de modo linear, pacífico, sem descontinuidades ou conflitos, quando ela é efectivamente descontínua, dramática e de rupturas (embora não assumidas) ao longo do tempo. Não se pode disfarçar o que é indisfarçável e pactuar com a hipocrisia ou o cinismo dos que pretendem rasurar o passado daquilo que não encaixa na sua interpretação falsamente beatífica das coisas.

O Público decidiu celebrar a sua chegada à idade simbólica da maioridade com a publicação nostálgica de uma edição que nunca chegou às bancas, a 2 Janeiro de 1990, à qual que se seguiu um caderno especial comemorativo dos 18 anos que entretanto decorreram e das mudanças que, nesse período, abalaram o mundo. No texto de apresentação desse caderno, José Manuel Fernandes cita simpaticamente passagens do editorial que escrevi para o número 0 do Público, onde eu me interrogava com algum pessimismo sobre a euforia democrática que se seguiu à queda do muro de Berlim e lembrava ‘velhos fantasmas’ que entretanto ameaçavam regressar: ‘Um nacionalismo que evoca antigos pesadelos’ e a ‘crispação chauvinista e religiosa’. Eu temia, então, que a década da democracia – recorda ainda Fernandes – viesse a ser ‘apenas uma miragem do fim do milénio’.

Estas citações de que parte o actual director do Público são elucidativas a mais de um título: porque ele as integra numa visão pretensamente consensual das mudanças ocorridas nestes dezoito anos e porque escamoteia, num editorial comemorativo, a própria memória e os acidentes de percurso da história do jornal ou a ruptura que se foi progressivamente desenhando entre o Público dos seis primeiros anos – de que fui director – e o Público que hoje existe.

Fernandes faz de conta que entre o princípio e o fim provisório desta história terá havido uma linha editorial essencialmente coerente com o espírito original do jornal. Por outras palavras: simula que a memória não existe, nem sequer a dos leitores que, tendo acompanhado o Público desde os primeiros tempos, puderam constatar não apenas as suas radicais metamorfoses gráficas e estruturais como, sobretudo, o alinhamento ostensivo das posições editoriais mais influentes – as do director, obviamente – com uma cruzada ideológica de matriz neoconservadora, que levou, entre outras coisas, à legitimação das políticas da actual Administração republicana e da intervenção no Iraque.
Nem de propósito, o editorial de José Manuel Fernandes da passada quinta-feira tinha o seguinte título: ‘Não foi Hillary que venceu anteontem, foi McCain’. Ora, a surpresa de terça-feira foi o regresso vitorioso de Hillary e não a anunciada confirmação de McCain como candidato republicano. Fernandes toma a ideologia por notícia. E, com irreprimível excitação, já prevê, aliás, que a ‘guerra fratricida entre os democratas que as vitórias de Clinton vão prolongar devolvem a McCain o sonho de chegar à Casa Branca’.
Percebe-se: McCain, homem de princípios e carácter, representa também a última oportunidade que resta aos republicanos, aos neoconservadores e a Bush para lavarem a face depois do desastre iraquiano e outros desastres que se foram seguindo. Apesar de ser o anti-Bush republicano por excelência, McCain é um cruzado indefectível da presença americana no Iraque. Nele reside, pois, a redenção possível.
Não ponho em causa o direito que assiste a José Manuel Fernandes de escrever o que escreve e defender as causas em que acredita. Tal como não questiono o seu direito e o da administração do Público de proceder à transformação do jornal em algo essencialmente diferente daquilo que foi nas suas origens já longínquas. São as regras do jogo: quem tem dinheiro e poder é que manda, como eu próprio me vi forçado a admitir quando a última administração do meu tempo – naturalmente mandatada pelo accionista – contratou uma equipa de assessores estrangeiros que se propunham impor ao Público a fórmula de um jornal regional escocês, entretanto falido. Demiti-me então civilizadamente em companhia de Jorge Wemans e, por sorte, o projecto escocês foi congelado. Mas, pelos vistos, as coisas mudaram muito a partir de então, desde que se aceitem as regras do jogo, ainda quando elas não são nada claras nem assumidas. Precisamente, o que questiono não é sequer que as coisas sejam o que são – embora lamente a crescente asfixia da liberdade de imprensa em Portugal, mas que se procure disfarçar, escamotear e contrabandear a sua realidade. Tal como não imagino que o New York Times se transforme no Wall Street Journal ou vice-versa – sendo ambos eles, diga-se, excelentes jornais, embora de orientação editorial antagónica –, não me parece normal que um jornal que foi uma coisa passe a ser outra insistindo em fingir que o não é – enquanto alguns que criaram o Público se conformam temerosamente com essa aparente fatalidade. Aquilo que hoje afecta – por vezes muito injustamente, reconheço – a credibilidade do Público tem a ver com a falta de transparência e o carácter errático da sua linha editorial. É uma opinião, mas, como se sabe, está longe de ser apenas a minha opinião.

2 Comments:

Blogger G. said...

É verdade que cada um teve mais 5 deputados, mas como tu sabes isso resulta do método de Hondt. Na verdade, o PSOE teve, em relação a 2004, mais 38,388 votos, enquanto que o PP teve mais 406,829. Há aqui diferenças grandes!

12/3/08 09:59  
Blogger J. said...

O método de Hondt é mesmo uma chatice, não é?
Para mim contam os resultados finais. Apenas isso.

12/3/08 13:58  

Enviar um comentário

<< Home